O trabalho e o ambiente e as condições em que é realizado, o emprego, o salário e os direitos dos trabalhadores são questões essenciais de saúde pública, na medida em que interferem diretamente no processo de determinação social da saúde e do adoecimento humano. Por isto, a aprovação da reforma trabalhista do governo Temer por uma insensível maioria de 296 dos 473 presentes à sessão plenária da Câmara dos Deputados, às 22h29 da noite do dia 26 de abril de 2017, representa uma catástrofe sanitária.
Ao atribuir força de lei a acordos coletivos e até individuais em que o trabalhador abra mão de seus direitos, mesmo que em desvantagem de poder nestas negociações, dentre inúmeras outras medidas que visam privilegiar somente o interesse do empregador, a reforma deverá elevar o risco, deteriorar e precarizar o trabalho no país, atingindo em cheio a dignidade e a saúde dos homens e mulheres que trabalham e de todos os que deles dependem.
Retrocedemos a antes dos anos 1930, retrocedemos aos séculos da escravidão, alertam o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), sindicalistas e pesquisadores ouvidos em nossa matéria de capa, que aborda, em 11 páginas, as consequências das mudanças contidas no texto aprovado na Câmara, na regulamentação das terceirizações e na redução da definição legal do trabalho escravo.
Entre as alterações criticadas estão a diminuição da competência dos sindicatos, inclusive na proteção dos trabalhadores em casos de homologação de rescisões contratuais; a permissão de acordos individuais para a definição de bancos de horas e jornadas de trabalho, mesmo que exaustivas; a possibilidade de impedimento ao acesso à Justiça na forma de acordos extrajudiciais irrevogáveis e arbitragem das relações de trabalho sem a participação da Justiça do Trabalho. A criação do trabalho intermitente, com recebimento apenas por horas ou dias, legaliza para as empresas contratar o “bico” sem a perspectiva de qualquer direito trabalhista, dizem os entrevistados. Cai a proteção atual ao trabalho de 30 horas semanais, como em telemarketing e outros, e se amplia o trabalho parcial e a adoção do teletrabalho, sem previsão de horas extras e outros direitos.
As alterações são tão desfavoráveis aos trabalhadores que os que as propagandeiam nem as enunciam de forma diferente, apenas insistem que vai ser melhor assim. Um exemplo vital para a saúde das mulheres e das crianças é o das gestantes e das que amamentam, que hoje são protegidas por lei de trabalhar em qualquer atividade insalubre. Exultante com a vitória do governo, um grande jornal comercial limitava-se a informar, no dia seguinte, que agora gestantes estão protegidas apenas no caso de insalubridade de grau máximo e só enquanto durar a gestação e que, para atividades de grau médio ou mínimo de insalubridade, “a gestante deverá ser afastada quando apresentar um atestado de saúde emitido por um médico de confiança”.
Segundo o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) demonstram que a diminuição da proteção dos trabalhadores em 63 países, nos últimos 20 anos, não gerou empregos, nem reduziu a taxa de desemprego. Em sua opinião, a flexibilização da legislação trabalhista implementada na Espanha em 2012, citada por defensores da reforma como exemplo a ser seguido, reduziu drasticamente os contratos indeterminados e as vagas de tempo integral e elevou o número de contratos em tempo parcial: “trouxe maior precariedade, piores jornadas, trabalhos menos qualificados e salários mais baixos”.
Esta mudança radical na regulação das relações de trabalho, feita à revelia da sociedade, por não ter sido submetida a ela como proposta em processo eleitoral democrático, representa a demolição das leis de proteção ao trabalho, que resultaram de lutas históricas dos trabalhadores de todo o mundo. No Brasil, além de conquistas políticas e sindicais, a legislação que começa a ruir refletia uma evolução, a ser aperfeiçoada, no processo civilizatório de costumes, cultura, relações sociais e do Estado com a sociedade e de valorização e proteção da vida humana.
Não há qualquer aspecto bom nestas notícias. Da Câmara, o projeto de lei que sustenta a reforma trabalhista vai para o Senado Federal. O tamanho da resistência a este desmonte e o quanto será levada em conta, não se sabe. Sindicatos, entidades e movimentos da sociedade civil convocaram uma greve geral para 28 de abril, dia seguinte ao fechamento desta edição. É a história em curso, que um dia será a história do passado. Quem defende a saúde da população espera que não seja o começo do fim de um país mais civilizado que se poderia deixar para as próximas gerações.
Publicado em 1º de Maio de 2017, por Rogério Lannes na Revista Radis.